Os documentos dos bispos latino-americanos – em particular de Medellín e Puebla - falam da “necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, em vista de sua libertação integral” (Puebla, n.1134).
Jesus fez a opção pelos pobres
Jesus cresceu no meio de uma realidade conflitante de exploração econômica, de convulsões sociais, de desintegração crescente das instituições e de explosões messiânicas. Desde o início de seu ministério público, Jesus rompe com o poder que escraviza, em sua tríplice dimensão – econômica, política e religiosa –, e assume a causa da libertação dos pobres, presos, cegos e oprimidos (Lc 4,18-19).
A parábola do samaritano solidário (Lc 10,25-37) ilustra bem a opção e a caminhada profética feita por Jesus, modelo para todos os que o seguem. Jesus contou a parábola do Bom Samaritano em resposta a um doutor da lei que lhe tinha perguntado: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?”. Diante da preocupação do doutor da lei a respeito da “vida eterna”, Jesus indica o caminho que promove a vida sem exclusão já neste mundo. O centro da parábola é “um homem”, ícone de todas as pessoas em situações de necessidade. Um homem vítima de assalto, semimorto, abandonado. Jesus revela, nessa parábola, aguda percepção da realidade social. Denuncia o sistema de exclusão e subverte os valores estabelecidos pelos senhores do Templo, aqui representados pelo sacerdote e pelo levita. Ambos viram o homem abandonado e passaram adiante. Contrariamente age o samaritano, pertencente a um povo odiado pela elite religiosa judaica, idealizadora do sistema do puro e do impuro.
A parábola reflete a prática cotidiana de Jesus de Nazaré. Sua vida foi pautada por atitudes de amor e solidariedade, sensibilidade e carinho, acolhida e perdão, cuidado e indignação. Em todos os lugares, suas palavras e ações são portadoras de liberdade e vida para os possessos das ideologias dominantes, para os doentes, enfermos e excluídos (=pobres, mulheres, pecadores, estrangeiros…).
Há quem diga: Jesus não era nem de direita nem de esquerda, nem de cima nem de baixo... Seria ele um ser etéreo? Ele não fugiu do mundo, dos conflitos e exigências da época. Ele não fica a igual distância dos grupos. Ele participa e toma posição, e o faz a partir de um “lugar social” bem preciso, definindo-se diante da questão vital: a instauração de uma sociedade outra, diferente…
A Igreja fez a opção pelos pobres
O Concílio Vaticano II, por meio da Gaudium et Spes, formulou princípios orientadores para a missão da Igreja num mundo desigual e em transformação.
No fim do Concílio 40 bispos latino-americanos prepararam e assinaram o “Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre”: Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue.
Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje, nas insígnias. Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco... em nosso próprio nome.
Desde o começo, as CEBs (Comunidades Eclesiais de base) praticam a eclesiogênesis, isso é, quando uma CEB passa dos 80 membros, ela se reparte em duas. E este crescimento missionário é bastante incentivado.
* As CEBs puxaram uma nova estratégia, pois elas simplificam tudo: as pessoas são todos por um e um por todos. Elas fazem que os cristãos sejam protagonistas, cresçam na fé, se conheçam e ajudem, celebrem, preparem a si e aos filhos para os sacramentos...
* Elas acabam com o anonimato na Igreja. * Elas dão valor ao lado do carisma, tirando a gordura da instituição. * Fazem que a Igreja de piramidal torne-se circular.
* Aprovadas pelos bispos, as CEBs se sentem integradas e em comunhão com a Igreja. Elas colocam a Eucaristia, junto com a Bíblia, bem no centro. Participam da celebração eucarística e da vida paroquial.
* Formam-se “Federações de CEBs” e dá-se vida aos “Encontros Intereclesiais das CEBs” a nível regional e nacional.
* Sendo que os “círculos bíblicos” mexem com a realidade, puxando uma salutar transformação, eles acabam fazendo um trabalho político, pois tem a ver com o bem comum, a conjuntura, os direitos das pessoas, e com vícios e virtudes das estruturas e instituições. Colocar a Palavra de Deus como juiz da realidade, significa fazer que a utopia do Reino de Deus açode toda política. Deste modo as CEBs foram protagonistas na travessia da ditadura para a democratização do País.
Medellín falou alto da temática eclesial da libertação e Puebla da opção preferencial pelos pobres, duas balizas das CEBs. Assim como colaborou a “conversão” da Igreja latino-americana: a descentralização, o movimento do baixo para o alto e da periferia para o centro, enquanto a práxis milenar da Igreja é de cima para o baixo e do centro para a periferia.
Simplificando muito, poderíamos dizer que um grupo de vizinhos, geralmente pessoas das classes populares, decide se encontrar com espírito de fé, tendo também proximidade de consciência social: nasce uma CEB. Então determinantes são os encontros, que podem ser semanais ou quinzenais. Eles são na linha do chamado “círculo bíblico”.
Podemos colocar assim: nos encontros o grupo pega numa mão a Vida e na outra a Bíblia, confronta as duas e decide o que fazer. Em outras palavras: após a oração inicial, os participantes tomam conhecimento da realidade -de um problema existencial, através de dados ou de um fato...-, em seguida eles procuram julgar ou iluminar a realidade à luz da Palavra de Deus e, por fim, decidem o que fazer. Em suma, a Realidade (a Vida da nossa sociedade) é projetada no espelho da Bíblia que nos traz a Vontade de Deus: se a Realidade não bate com a Vontade de Deus (com o Reino de Deus) precisa arregaçar as mangas, agir, mudar, transformar. É a hermenêutica do método ver-julgar-agir.
Uma ideia tão simples vingou! Para subsidiar os encontros, foram produzidos centenas, milhares de cadernos, reproduzidos em milhões de copias impressas ou xerocadas ou mimeografadas. Nos anos 1970 e 80, os núcleos das CEBs chegaram a cem mil, espalhados no Brasil inteiro, especialmente nas zonas rurais e nas periferias. No ano 2000, quando já passara o pique das CEBs, existiam cerca de 70 mil núcleos de Comunidades Eclesiais de Base, nas cidades e no campo; existiam quase dois milhões de católicos adultos atuantes nas CEBs.
Peregrina neste mundo, a Igreja precisa ser discípula missionária do Senhor. Não distante, burocrática e sancionadora, mas evangélica, comunitária, participativa, realista e mística (CNBB, Doc 100, n. 37). A preocupação da justiça foi sempre presente na Igreja, embora às vezes fosse equivocada. É nesta preocupação que a Igreja desenvolveu sua Doutrina Social.
O papa Francisco nos diz: “A proposta é o Reino de Deus; trata-se de amar a Deus que reina no mundo. À medida que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, justiça, paz, dignidade para todos” (EG 180).
A Igreja América Latima fez a “opção pelos pobres” (antes tinha feito a opção pelos não-pobres?). A expressão “opção pelos pobres” espantou. Então em momentos seguidos falou-se de opção “preferencial”, “evangélica” e “não exclusiva”.
Porém não precisava tanto. Dizer “opção pelos pobres” não quer dizer “amar os pobres mais que os ricos”, mas “amar a todos, ricos incluídos, a partir dos pobres”.
Jesus não usa duas linguagens, não faz duas propostas: com misericórdia, vai ao encontro de todos, oferecendo-lhes a oportunidade de um novo caminho: é a libertação de todos a partir dos pobres. Zaqueu toma consciência (Lc 19,1-10): enriquecera à custa do empobrecimento do povo.
Ele se compromete a restituir o que roubou e Jesus lhe garante: “Hoje a salvação chegou a esta casa”.
Pe. Arnaldo De Vidi sx.